quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Do lado da Guest House tem um centro tibetano onde aceitam voluntarios. Um tipo facil de voluntariado. Falar ingles com refugiados tibetanos. Pois fui la e sentei com uma monja que me contou um pouco de sua historia. Muita coisa nao consegui entender por causa do forte sotaque. Mas o pouco que entendi foi o suficiente.

Estamos sempre falando do Holocausto. Para nao esquecermos. Para nao cometermos o mesmo erro. Pois digo que coisas parecidas estao acontecendo e nos tempos atuais e uma vergonha que nao se faca nada.

Esta mulher foi criada numa fazenda. So teve acesso a escola aos 24 anos. Aos 19 resolveu ser monja. Agora tem 37 e e uma refugiada politica. A tiraram de seu monasterio, junto com todas as outras monjas e a jogaram numa prisao chinesa por 3 anos. Durante esses 3 anos foi torturada (suspensa pelos punhos, eletrocutada e sabe-se la mais o que) e forcada a trabalhar. Tinha um pedaco de terra onde plantava. Tudo o que colhiam era escrupulosamente pesado e se nao chegasse ao peso esperado era severamente punida.

Depois de 3 anos finalmente a liberaram, com uma carta para apresentar-se de tanto em tanto tempo em Lhasa. Perdeu a todos seus amigos, presos, espalhados pela China e pelo Tibet, sem acesso a telefone, internet, sem conseguir saber onde estao. A mandaram de volta ao povoado onde nasceu. Ai pelo menos tinha uma amiga que morava no povoado vizinho, tambem monja saida da prisao. Para encontrar-se levavam as ovelhas a montanha que ficava no meio dos dois povoados e se encontravam no topo.

POis foi nesse cume que decidiram que nao queriam mais ficar ali. Cada uma apresentou-se em Lhasa em dias diferentes, segundo o indicado nas cartas dadas pela guarda chinesa. Ali juntaram-se a outras 17 pessoas e juntas escaparam.

Levaram 28 dias caminhando pelas montanhas, cada um com apenas uma bolsa, com um par extra de sapatos e um cobertor. 26 dias ate escutar um onibus. 28 dias para encontrar ajuda. Durante esses 26 dias so caminharam, ja nao consegue contar quantas montanhas subiram e desceram.

Para passar na super controlada fronteira com o Nepal tiveram que caminhar pela noite. Sem luz, sem barulho, sem ver a pessoa da frente, as vezes conseguindo escutar o ruido de um passo.

Ja no Nepal encontraram pequenos e pobres povoados onde conseguiram trocar os casacos por pouca comida. Ali erao tao pobres que nao podiam trocar mais e eles tinham fome e sede e sono, qualquer coisa servia. Tambem no Nepal foram roubados, separados do pouco que tinham. Levaram os sapatos, os cobertores, ate as poucas moedas costuradas no interior da roupa.

Depois de 28 dias escutaram ruidos de onibus. Depois de 28 dias encontraram mais refugiados tibetanos. Refugiados chegados a mais tempo. Lhes deram comida e abrigo. E o mais importante, uma passagem para Delhi. E de Delhi para Dharamshala. Onde encontraram finalmente seguranca. Queria poder dizer que encontraram tambem paz, mas nao posso ao ver as lagrimas que a monja contem ao contar a historia. Quanto ficaram para tras? Quantos nao sobreviveram a prisao chinesa? E as lembrancas? E os pesadelos?

E nos seguimos falando do Holocausto...

Toda essa historia me fez pensar muito. Parece muito dificil mudar o mundo. Nao valorizamos o planeta, nao valorizamos os seres humanos. Mudar o mundo e impossivel se nao comecamos por nos mesmos. A acao de uma pessoa pode mudar/influenciar aqueles que estao a sua volta.

Comece por si mesmo. Pouco a pouco. Recicle o papel dos seus cadernos. Separe um fim de semana para isso. Tenha energia renovavel na sua casa. Se possivel plante sua comida. Ame a natureza. Medite. Sorria. Sorria para si mesmo. Sorria para os outros. De muitos abracos. De muito amor. Ajude a quem necessita, mesmo que voce nao tenha muito. Tire um dia para estar em silencio. Mude e estara mudando o mundo.

Faca que a sua casa seja um pequeno paraiso. Que outras pessoas possam te buscar para receber alivio. Nao precisa ser um iluminado para fazer o bem. Nao espere a sabedoria da idade antes de modificar sua vida. Mude pequenos gestos e atitudes.

Veja somente filmes bonitos, filmes que a alma agradeca. Sente em frente a uma mesma janela por horas ate apreciar a beleza que esta do outro lado. Se olhe no espelho ate encontrar a beleza que esta em voce.

Brinque com uma crianca. Ajude a um idoso. Ofereca o ombro a um amigo. Plante algum vegetal. Coma o vegetal que plantou. Plante uma flor. Aprecie a flor quando crescer e tambem quando murchar. Viaje. Enfrente seus medos. Nao tenha medo.

Ande descalco. Deite embaixo de uma arvore. Feche os olhos e voe. Aprenda a cozinhar. Para os outros. Busque ter um pedaco de terra. Nao dependa da tecnologia. Aprecie a tecnologia. Desligue as luzes. Passe uma noite a luz de velas. Passe duas noites a luz de velas. Acenda as luzes so quando necessario. Tenha luz solar. Nao tenha televisao. Tenha um computador.

Viva simples e felizmente. Nao queira comprar tudo o que ve. Compre so o basico. Tenha so o necessario. Nao queira depender da caridade dos outros. Aceite a bondade alheia. Ofereca caridade. Chore. Chore de felicidade. Chore de emocao. Chore de tristeza. Deixe a tristeza passar. Esqueca magoas e rancores. Lembre de momentos bonitos. Comparta momentos bonitos.

Diga "eu te amo". Todos os dias. Na frente do espelho. Aos amigos. A familia. Aos inimigos (se nao quiser, pense, um dia sera verdade). Escute boa musica. Evite o rock pesado. Influencia nossos pensamentos. Faca um retiro. Na sua casa. Em um ashram. Na floresta. Olhe as estrelas. Veja o nascer do sol. Pelo menos uma vez ao mes. Tome banho de chuva. Segure um bebe. Faca-o rir. Faca-o dormir.

Aprenda a ficar em silencio. Aprenda a ter so pensamentos positivos. Ame. A todos. Cuide do mundo. Veja novos horizontes. Faca coisas inesperadas. Surpreenda-se. Admire-se. Aprenda a ficar sozinho. Aprecia a companhia dos outro. Aprenda com seus proprios erros. Aprenda com o erro dos outros. Viva. Cada minuto. Cada segundo. Viva agora. aprenda tudo que puder. Nao aprenda nada que nao for usar. Nao fique rodando assuntos na cabeca. Passou. Esqueca. Use sua imaginacao. Seja criativo. Seja verdadeiro. Seja voce mesmo. Seja feliz. Deixe de inventar justificativas para nao se-lo. Nao deseje nada, mas aceite tudo que a vida te der.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Ontem pela tarde tive que trocar de quarto para que correspondesse as meras 150 rupias que estou pagando. Fui parar na planta baixa, sem varanda, de costas para a vista. Mas um quarto limpo e amplo. Para que queixar-me. A gust house dispoe de um Roof Top incrivel e ter que sair do quarto para ver a paisagem so sera bom, verei mais gente.
Olhar a vida nas ruas de Dharamshla e todo um aprendizado. OS tibetanos sao os donos dos negocios. Os indianos trabalham para eles. Quem cozinha sao os indianos e nao os tibetanos. Por outro lado, os tibetanos nao pedem esmola, os indianos sim.Todos os restaurantes e lojas tem um pequeno altar dedicado ao Dalai Lama. As paredes pintadas no estilo tibetano, os tetos vermelhos e bandeirinhas penduradas.
A cidade esta imersa numa imensidao branca. Desde ontem. As rus banhadas pelas nuvens, o vale e os picos totalmente escondidos pela nevoa. Tudo parece mais silencioso. A vida parece mais concentrada, parece mais limpa, parece mais real. Como se todos esperassem a volta do sol.
Hoje finalmente consegui comer no restaurante sem nome, que afinal tem nome: Dhasang, nao me perguntem o que significa. As tres mesas estavam por primeira vez vazias, desde que cheguei. Os turistas nem entram, o unico menu disponivel esta colado na parede e escrito a mao. Nem agua mineral tem. Feito para os tibetanos e nada mais. Mas continua sendo a melhor comida de todas. E quando estava la, esperando meu Thukpa (sopa de macarrao e verduras) entrou e sentou comigo, porque as duas outras unicas mesas estab\vam ja ocupadas, um suico, Julian. Acaba de sair do Vipassana e concorda que ali e o lugar com a melhor comida e o mais barato tambem. Diz que fez o Vipassana por acaso e por sorte, porque estava no numero 35 da lista de espera. Isso fez meu coracao gelar. Onde ja se viu lista de espera para fazer Vipassana?
Subimos juntos ate quase chegar ao centro de meditacao, porque ele esta hospedado em Dharamkot, uma vilazinha acima de McLeod Ganj, que e onde estou ficando. No meio do caminho, do outro lado do vale, por primeira vez reparei numas escadas que subiam a montanha. Escadas ingremes, escadas infinitas. Escadas que se perdem nas nuvens brancas que cobrem as montanhas. "Stairs to heaven", diz Julian, e eu nao posso mais que concordar.
Sento numa venda, na porta do centro de meditacao a espera que abra. O chai nao e tao bom quanto se podia esperar depois de uma longa caminhada. As moscas borbulham aqui e acola. MOnges sentados observam desde os bancos verdes a frente, o mala girando incessantemente em suas maos. Cigarras cantam e a branquidao envolve ainda mais. "Lost in heaven", nao posso deixar de pensar.
O Vipassana que comeca no dia 1 de outubro esta cheio. Voce pode ir para Katmandu, dizem. Nao quero Katmandu, nao qeuro Rajastao, quero faze-lo aqui. LIgo para o numero que me dizem. Fico na lista de espera. Numero 17. Ah,99% de chance de conseguir fazer o curso. Muita gente se inscreve e nao aparece. Amem, penso. Mas decido, se nao consigo fazer o curso como estudante, faco como ajudante, por mais dificil que seja, ja que faz tanto tempo que nao pratico. E o que tiver que ser, sera, porque assim e a India, aqui eu nao controlo nada. Nem quero controlar. Deixo meu destino nas maos da vida, e tenho certeza que tudo que passar sera o melhor para mim.
Volto para uma cidade ainda imersa numa nuvem branca. Volto devagar, apreciando a paisagem, vendo os macacos rebuscando no lixo. Os corvos que cantam sem parar. O cheiro dos momos (especie de pastel cozido ao vapor) nas ruas. E as vacas que as vezes cruzam meu caminho. Me sinto segura. Me sinto feliz.

sábado, 26 de setembro de 2009

Depois de varias horas de espera consegui subir finalmente no onibus para Dharamshala. Varias horas porque tive que deixar o hotel as 13:00 e quando comprei a passagem me falaram que o onibus saia as 16:00. Bom cheguei na agencia as 15:30 porque de la tinham que me pevar para o ponto. Ai fui descobrir que o onibus so saia as 17:00 e ninguem viria me buscar ate as 16:00. Bom, o que e meia hora de espera, certo? Passa a meia hora, passa 1 hora e so entao alguem aparece. Chegamos no ponto as 16:45. Bom, nao e um ponto, e uma calcada e o onibus para ali e pronto. Bem, mas tudo na India atrasa e o onibus que deveria passar as 17:00 nao chegava. E comeca a dar vontade de ir no banheiro. Sorte minha que nao fui a unica. Me juntei a duas israelis e la fomos nos em busca de algum banheiro. Demos com um banheiro publico. Ja da porta o cheiro era tao forte que dava vontade de vomitar. A mais corajosa de nos perguntou a uma indiana que estava parada ali perto, que nos apontou umas portas. As portas eram casas. Com a maior cara perguntamos se nao nos deixavam usar o banheiro. Isso gerou uma pequena discussao, mas as portas no final foram abertas e os indianos ganharam a historia da vida ao deixar que tres estrangeiras usassem o banheiro. Quando voltamos ao "ponto", o onibus ja estava la com nossas coisas e todo mundo dentro, so nos esperando.
Assim comecaram as 12 longas horas de viagem a Dharamshala. O calor dentro do onibus era quase insuportavel Todas as janelas abertas e as caras para fora, como cachorros. Em algumas horas sentia meu rosto tao sujo e gosmento que temi que se quebrara como uma mascara com a proxima piscada.
Um comentario sobre pegar onibus na India. Pode ser algo muito complicado. Quando te vendem a passagem te dao um ticket, como em qualquer outro lugar. Certo, so que ao subir no onibus exigem que voce entregue esse ticket. O que nao teria problema se os indianos nao fizessem over booking normalmente. E claro, fica voce, dentro de um onibus sem um ticket que prove que voce pagou por aquele lugar, e sem o ticket eles podem te mover daqui para la como um peao, ate voce ir parar la no fundao (devo dizer que sacode demais!). Nos juntamos todos os estrangeiros numa complicacao geral para entregar tao valiosos papeizinhos. So o fizemos quando conseguimos a palavra e o cartao pessoal do responsavel da companhia e a promessa de que ninguem seria trocado de lugar.
Viajar de onibus na India, mesmo de madrugada, e toda uma historia. Nao ha um minuto de silencio. Buzinas incansaveis soam aqui e acola. E uma forma de saudacao e nao sera dificil ver algum caminhao com os dizeres "Horn please" ou "Blow the horn", deixando bastante clara a posicao dos indianos em relacao ao "suicidar-se" numa aventura pelas estradas indianas.
A vantagem de que o onibus tenha saido tarde e que quando chegamos a Dharamshala ja estava claro. Minha primeira intencao era ir a mesma guest house que fiquei da ultima vez que vim. Mas acabei compartilhando um rickshaw com um australiano e subindo ao proximo povoado, Bhagsu, porque supostamente e mais tranquilo. Bom, supostamente nao, me verdade que e mais tranquilo, mas apos ver alguns quartos e nao gostar peguei outro rickshaw e voltei para Dharamshala e a Pawan House, a guest house da ultima vez.
Ai tive a oportunidade de fazer minha grande primeira negociacao. Da ultima vez que vim paguei 150 num quarto duplo e o pessoal que conhecemos no onibus pagou 100 rupias nos de solteiro. Bom, queriam me cobrar 300 rupias no de solteiro. Ri e comentei que o preco tinha subido demais. Ah, mas subiram tambem os impostos, me disseram. Apos uma longa conversa consegui, sob promessa de nao contar a ninguem, que me cobrassem 150 rupias. Eram as 8 da manha. Tive que esperar ate as 12:30 para poder entrar. Mas valeu a pena chegar num quarto grande e limpo, com um banheiro decente, televisao e uma vista espetacular.
Que lindos sao os tibetanos, sempre com um sorriso nas bochechas rosadas. Sempre com um djapa mala na mao. No meio da rua se pode escutar mantras tocando e voce entra no clima, querendo ou nao, pois antes que perceba esta repetindo o mantra que escutou (geralmente OM Mani Padme Hum) na sua cabeca.
O dia amanheceu nublado. Uma neblina branca e baixa, nao se pode ver o topo das montanhas. Algumas casas coloridas se deixam entrever pela branca cortina, junto com as bandeirinhas tibetanas que bailam ao vento com milhares de pedidos e preces. O ceu ruge, os corvos cantam e um aguia paira no ar observando tudo desde cima.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Bem, aqui estou eu, de novo na India. Demorei, mas voltei. E a India nao mudou nada. Continua sendo suja, com transito caotico, as buzinas incessantes e ainda por cima faz calor. Nada como a India.
Chegar as 23:00 horas nao foi tao ruim quanto havia imgaginado. PEgar taxi foi tranquilo, dificil foi reconhecer a rua do hotel na escuridao e com tudo fechado. Mas cheguei sa e salva num hotel de paredes amareladas e descascando, lencois sujos (sorte que tenho meu cobertorzinho tibetano) e banheiro que seria impossivel entrar em qualquer outra parte do mundo. Enfim, ate o quarto parecia o mesmo da outra vez, ate a televisao parecendo completamente fora de lugar muito embora eu tenha ficado em outro hotel. Dormir ja foi mais complicado. Nem por causa do calor, ja que o quarto tinha ate ventilador, acho que foi mesmo a ansiedade. Nao consigo contar nos dedos as vezes que virei e revirei na cama, ate desistir e cedinho descer por uma ruela cheia de moscas ate um cafe para tomar um lassi de banana que deixou muito a desejar.
E depois bater perna, porque todos ja sabem, vim sem roupa. Bom, nao e verdade, vim com a calca do corpo e algumas blusinhas. Algo tinha que comprar, mas em Delhi nem isso tenho vontade. Assim que depois de trocar dinheiro e pesquisar mercado acabei comprando a passagem para Dharamshala por modias 450 rupias (para os leigos, atualmente 1 euro vale 70 rupias), o que e extremamente caro tendo em conta que ha 4 anos paguei 300 (sim, trouxe meu caderninho de precos da vez passada). Mas ninguem me fez mais barato. Nem falando que sou israeli.
Sim, porque resolvi tirar vantagem do fato. Aos israelis sempre cobram mais barato, afinal sempre veem meio sem dinheiro. Assim que comecei a falar a quem me pergunta se seu de la. So dizem que meu sotaque de ingles nao parece muito, mas como ate os israelis falam que pareco... Melhor aproveitar!
Fora que no aviao quase mudo todo o pouco planejamento que tenho nessa viagem. Sentei ao lado de uma mulher indiana muto simpatica que ia para o templo de Krishna em Vrindavam. Me convidou para ir com ela. Quase fui, mas depois pensei que enquanto nao tiver meditado, ou melhor, aprendido a meditar, nao conseguirei tirar muito proveito.
Mas assim e quando a gente se abre para a vida. Os destino vai colocando as possibilidades no nosso caminho. cabe a nos decidir quais aceitar.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Conto de Cristina

Cristina tinha problemas no trabalho. Se sentia exausta, se sentia sem animo, sem expectativas. Sentava atrás da escrevaninha todos os dias, escrevendo cartas, traduzindo textos, atendendo telefones. Era eficiente, muito eficiente, fazia as coisas rápido, e sempre dava o melhor de si.
Quando tinha tempo olhava pela janela. Uma janela pequenina que ficava no fim do corredor. A janela tinha vista para os infindaveis telhados da cidade. As vezes deixava a vista se perder nos telhados, tentando se sentir como as telhas ao sol. Tentando absorver o sol só com a imaginaçao. Sentia inveja dos pássaros. Os via voando de um lado a outro, sentindo o vento passear em suas penas, vendo aquele imenso mundo lá do alto.
E entao tinha que voltar à sala congelada por um ar condicionado. Tinha que seguir olhando para a tela do computador. Nao podia voar, nao podia sentir o sol. Esperava ansiosamente pelo fim de semana, onde podia fingir que era uma telha e absorver todo o sol, nao só com a imaginaçao.
Sua mae costumava dizer que ela era uma alma livre. Que nascera para ser bicho selvagem. Que nascera para nao pentear nunca o cabelo, ate ter um ninho de pássaros nele. Desde pequena reclamava e chorava quando a mae insistia em desembaraçar seus cachos. Sua mae dizia que já tinha levado muitos sustos quando ela era pequena. Ficava horas sem fazer barulho algum. E nao adiantava chamar, ela nao respondia. A mae a encontrava onde houvesse um raio de sol. Deitada no chao. Grudada no vidro da janela. Sentada na cama. Ela nascera para ser um raio de sol.
As vezes perdia a noçao do tempo olhando as formigas, indo e vindo no chao num dia de chuva. Algo maligno dentro dela a fazia provocá-las algumas vezes. Punha um dedo no meio do caminho, ou esfregava-o com sabao. E ficaba horas observando a confusao daquela fila negra, sem saber para onde ir, sem cruzar aquele mínimo espaço, mesmo havendo outra do outro lado.
“Menina, dizia sua mae, acorda! Sai desse vento ou ele vai acabar te levando! Nunca vi menina assim!”
Mas ela queria que o vento a levasse, carregado-a para mais perto do sol. Ficava ali, mesmo com chuva, na esperança que um dia se compadecera dela, ou que achasse que ela era parte dele e finalmente a levasse flutuando pelo mundo afora, acima das nuvens.
Parecia que sua pele tinha se acostumado com a chuva. Era como se ela mesma pingasse. Ou como se absorvesse as gotas. Como uma árvore. Se sentia mais brilhante depois. E sentia vontade de cantar quando voltava o sol. Como os pássaros.
Ir à escola, foi um sacrificio, assim como terminar a faculdade. Era como ouvir vozes desentonadas, falando com o vazio. Ouvir todas as aulas de história, geografia, ou matemática, enquando o dia, o sol, a vida escorria lá fora, sem que ela pudesse fazer parte. O terminou por sua mae, que ainda acreditava que ela pudesse ser “gente”.
Agora já nao a tinha mais para dar-lhe bronca. Sua mae tinha morrido, de forma inesperada, em um dia chuvoso. Adormeceu pela noite e já nao despertou pela manha. Como se fosse uma decisao tomada anteriormente. Como se soubesse que já tinha cumprido sua missao.
Depois da morte de sua mae, Cristina resolveu dar um jeito na vida. Talvez a mae tivesse razao, ela tinha que parar de sonhar. Talvez a mae tivesse desistido de acordar assim como tinha desistido de falar que ela saísse do sol ou que penteasse os cabelos.
Lá foi Cristina, os cachos domados em um coque perfeito e lacado, vestida na sua melhor roupa, tentando equilibrar-se no salto, tentando fazer as pernas nao se atrapalharem dentro daquela saia tao apertada. Cristina nao tinha experiencia. Mas, sim, um currículo bonito, que aprendera a fazer em suas infindáveis aulas.
Teve que buscar muito. Ninguém queria uma empregada sem experiencia. Nao desistia e continuava buscando, porque afinal, enquanto caminhava de um lado a outro aproveitava o dia. Queria que ninguém a contratasse, queria ficar buscando para sempre, assim, a mae saberia que ela estava fazendo a sua parte e ela nao seria obrigada a estar em um escritório.
Mas afinal, alguém gostou de Cristina. Gostou daquele olhar meio perdido. Daquela cara tao séria numa menina tao jovem. Gostou da sinceridade e coerencia. E resolveu dar uma chance. E lá se foi Cristina, tristemente, para seu primeiro dia de trabalho. Já nao tinha mais que se equilibrar no salto, nem se concentrar para nao embaralhar as pernas na saia apertada. Tinha que usar óculos. Talvez por ter olhado para o sol por tanto tempo.
No escritorio, Cristina parecia a secretária perfeita. Os óculos baixos no nariz. Um coque caído no pescoço. Roupa de cores escuras, meia calça transparente, pés enfiados em um sapato de salto alto e bico fino. Séria, muito séria. Por que quem podia sorrir dentro de um ambiente tao frio?
Fez alguns amigos, nao muitos porque era muito calada. Mas saía para comer com eles e se divertia mais do que imaginava. Mas se entristecia de novo ao voltar ao ecritório, naquela sala pequenina, sem janelas, cheia de papéis empilhados ao seu redor.
Cristina conheceu no escritorio o homem mais bonito que jamais vira em sua vida. Homem sempre sorridente, homem de cabelos dourados como o sol. Ele passava e seu dia se iluminava. Sempre vinha comprimentá-la com um chocolate ou uma flor. Sempre com uma palabra amigável.
Cristina nunca o amou. Cristina só sabia amar o sol. Mas o apreciava por dar-lhe atençao. Ele sim a amava. Cristina era alguém que emanava simplicidade, ingenuidade. Necessitava alguém que cuidasse dela. E ele se propos a isso. Almoçavam juntos, conversavam depois do trabalho. Cristina até o convidou para tomar um café. E contou sua história de amor com o sol. Ele achou graça.
O tempo passou e o sorriso triste de Cristina o cativou mais e mais. Só ele via como os olhos de Cristina se perdiam na janela lá no fundo do corredor. Só ele via Cristina soltar o cabelo preso naquele coque sem graça, para formar cachos rebeldes. Só ele via um meio sorriso quando um pássaro passava na frente da pequena janela.
E quis mais. Cansado de ve-la de longe, quis ve-la de perto, e assim, de repente, levando uma rosa, a pediu em casamento. E viu Cristina empalidecer. Viu os olhos brilharem um pouco, mas logo se apagarem e escaparem até a janela do fundo. E soube, soube naquele momento, que nao poderia, que embora necesitasse proteçao, Cristina era uma alma livre. Lhe deu um sorriso triste, deixou a rosa em sua mesa e se foi, a tristeza pesando no coraçao.
Naquele dia Cristina se cansou de olhar. Se cansou de imaginar. Se cansou de ser triste. De supetao, levantou do seu esconderijo de papel e cruzou o corredor decididamente. E abriu a janela. Todos olharam-na espantados. Cristina abrira a janela! Inspirou o ar puro e o sol tocou seu rosto. Sem sentir, sem se dar conta, pulou a janela, voando em direçao ao sol.
Alguns dizem que Cristina nunca chegou a tocar o chao. Que o vento, finalmente teve pena dela, erguendo-a e levando-a ao encontro de seu destino. Outros acreditam que Cristina nunca se jogou daquela janela, que simplesmente, foi-se para sempre daquele escritorio para viajar pelo mundo.
Eu nao sei, porque nao estava. Sei que hoje em dia aquela janela esta sempre aberta. Acho que é porque ele segue esperando que Cristina volte, voando, por aquela janela, já sem o sorriso triste. Volte para levá-lo junto com ela rumo à felicidade.
Aqui começa minha viagem. Antes mesmo de pegar o avião. A mochila ainda desfeita no chão. Indo atás de tudo assim, meio de última hora. Meio sen planejamento. Sei onde vou chegar, sei onde quero ir em seguida. Depois, espero que a própria Índia me leve.
Passagem comprada, dinheiro tirado, saco de dormir (finalmente) comprado. A eterna pergunta do que estarei esquecendo.
Dar de baixa nas contas, jogar todo o inútil fora. O mais difícil, despedir-se dos amigos. Mesmo que por pouco. Mesmo que o tempo seja relativo.
Mas isso é o bom de uma viagem, conhecer mais gente, entrar em contato com uma nova cultura. E deixar os laços e os apegos. Bom, não deixá-los, adiá-los, guardá-los. Até outra vista.
Enfim, aqui vou eu. A vida me espera. Aqui começa minha aventura.

domingo, 6 de setembro de 2009

Relações Humanas

Como pode ser que a felicidade não chegue assim, imediata, quando (e se) finalmente encontramos nosso príncipe encantado? Nós, mulheres, fomos criadas aprendendo que a felicidade viria ao encontrá-lo. Não foi isso que aprendemos (ainda que por osmose) ao brincar de Barbie e Ken, ver a Bela e a Fera, Cinderela, Branca de neve, A pequena sereia e sei lá mais o que enquanto os meninos brincavam de carrinho e guerra lá fora?
Pois parece estranho que, seguindo o conceito de toda essa criação, não tenhamos encontrado a felicidade nem com o primeiro, nem com o segundo e nem com o terceiro amor. Talvez com esse, um pouco mais, talvez seja o homem certo, mas a felicidade parece não ser completa. Ainda estão as brigas por coisas tontas e nem tão tontas assim.
Imagino que todos nós, quando nascemos, somos como uma caixa vazia. Para quem acredita em vidas passadas, será uma caixa vazia mas com fundo falso. Sob esse fundo falso, desconhecido por nós, se escondem todas as experiências e traumas de outras vidas. Para quem não acredita nelas, pois imaginemos uma caixa vazia de todo.
Pouco a pouco vamos enchendo a caixa. Primeiro de sensações. Frio, calor, fome. Pouco a pouco vão chegando as emoções, amor, raiva, felicidade, tristeza. Depois vão nos metendo uma série de informações conturbadas, temos nossos primeiros medos, preconceitos, traumas. E criamos uma carapaça para nos proteger. Para tentar proteger aquela mesma caixa que antes estava vazia e agora já transborda.
Transborda tanto que é difícil lidar e ter paciência para o conteúdo interno de outras pessoas. Não somos mais que caixas transbordantes, incapazes de esvaziar o que tem dentro. Entãos surgem as brigas dos egos, cada um tentando proteger o conteúdo de sua caixa, guardado como um tesouro por tanto tempo.
Assim somo nós, homens. Até que entandamos que a felicidade não chegará através de um príncipe encantado. Não chegará através do conteúdo da caixa de terceiros. Chegará quando, e somente quando, esvaziarmos nossas caixas, descobrirmos o fundo falso, descobrirmos também o que está lá, aprendendo sobre cada momento, sentimento, emoção ou sensações guardados e depois jogando-os fora. Só assim seremos livres.
E felizes.