terça-feira, 22 de setembro de 2009

Conto de Cristina

Cristina tinha problemas no trabalho. Se sentia exausta, se sentia sem animo, sem expectativas. Sentava atrás da escrevaninha todos os dias, escrevendo cartas, traduzindo textos, atendendo telefones. Era eficiente, muito eficiente, fazia as coisas rápido, e sempre dava o melhor de si.
Quando tinha tempo olhava pela janela. Uma janela pequenina que ficava no fim do corredor. A janela tinha vista para os infindaveis telhados da cidade. As vezes deixava a vista se perder nos telhados, tentando se sentir como as telhas ao sol. Tentando absorver o sol só com a imaginaçao. Sentia inveja dos pássaros. Os via voando de um lado a outro, sentindo o vento passear em suas penas, vendo aquele imenso mundo lá do alto.
E entao tinha que voltar à sala congelada por um ar condicionado. Tinha que seguir olhando para a tela do computador. Nao podia voar, nao podia sentir o sol. Esperava ansiosamente pelo fim de semana, onde podia fingir que era uma telha e absorver todo o sol, nao só com a imaginaçao.
Sua mae costumava dizer que ela era uma alma livre. Que nascera para ser bicho selvagem. Que nascera para nao pentear nunca o cabelo, ate ter um ninho de pássaros nele. Desde pequena reclamava e chorava quando a mae insistia em desembaraçar seus cachos. Sua mae dizia que já tinha levado muitos sustos quando ela era pequena. Ficava horas sem fazer barulho algum. E nao adiantava chamar, ela nao respondia. A mae a encontrava onde houvesse um raio de sol. Deitada no chao. Grudada no vidro da janela. Sentada na cama. Ela nascera para ser um raio de sol.
As vezes perdia a noçao do tempo olhando as formigas, indo e vindo no chao num dia de chuva. Algo maligno dentro dela a fazia provocá-las algumas vezes. Punha um dedo no meio do caminho, ou esfregava-o com sabao. E ficaba horas observando a confusao daquela fila negra, sem saber para onde ir, sem cruzar aquele mínimo espaço, mesmo havendo outra do outro lado.
“Menina, dizia sua mae, acorda! Sai desse vento ou ele vai acabar te levando! Nunca vi menina assim!”
Mas ela queria que o vento a levasse, carregado-a para mais perto do sol. Ficava ali, mesmo com chuva, na esperança que um dia se compadecera dela, ou que achasse que ela era parte dele e finalmente a levasse flutuando pelo mundo afora, acima das nuvens.
Parecia que sua pele tinha se acostumado com a chuva. Era como se ela mesma pingasse. Ou como se absorvesse as gotas. Como uma árvore. Se sentia mais brilhante depois. E sentia vontade de cantar quando voltava o sol. Como os pássaros.
Ir à escola, foi um sacrificio, assim como terminar a faculdade. Era como ouvir vozes desentonadas, falando com o vazio. Ouvir todas as aulas de história, geografia, ou matemática, enquando o dia, o sol, a vida escorria lá fora, sem que ela pudesse fazer parte. O terminou por sua mae, que ainda acreditava que ela pudesse ser “gente”.
Agora já nao a tinha mais para dar-lhe bronca. Sua mae tinha morrido, de forma inesperada, em um dia chuvoso. Adormeceu pela noite e já nao despertou pela manha. Como se fosse uma decisao tomada anteriormente. Como se soubesse que já tinha cumprido sua missao.
Depois da morte de sua mae, Cristina resolveu dar um jeito na vida. Talvez a mae tivesse razao, ela tinha que parar de sonhar. Talvez a mae tivesse desistido de acordar assim como tinha desistido de falar que ela saísse do sol ou que penteasse os cabelos.
Lá foi Cristina, os cachos domados em um coque perfeito e lacado, vestida na sua melhor roupa, tentando equilibrar-se no salto, tentando fazer as pernas nao se atrapalharem dentro daquela saia tao apertada. Cristina nao tinha experiencia. Mas, sim, um currículo bonito, que aprendera a fazer em suas infindáveis aulas.
Teve que buscar muito. Ninguém queria uma empregada sem experiencia. Nao desistia e continuava buscando, porque afinal, enquanto caminhava de um lado a outro aproveitava o dia. Queria que ninguém a contratasse, queria ficar buscando para sempre, assim, a mae saberia que ela estava fazendo a sua parte e ela nao seria obrigada a estar em um escritório.
Mas afinal, alguém gostou de Cristina. Gostou daquele olhar meio perdido. Daquela cara tao séria numa menina tao jovem. Gostou da sinceridade e coerencia. E resolveu dar uma chance. E lá se foi Cristina, tristemente, para seu primeiro dia de trabalho. Já nao tinha mais que se equilibrar no salto, nem se concentrar para nao embaralhar as pernas na saia apertada. Tinha que usar óculos. Talvez por ter olhado para o sol por tanto tempo.
No escritorio, Cristina parecia a secretária perfeita. Os óculos baixos no nariz. Um coque caído no pescoço. Roupa de cores escuras, meia calça transparente, pés enfiados em um sapato de salto alto e bico fino. Séria, muito séria. Por que quem podia sorrir dentro de um ambiente tao frio?
Fez alguns amigos, nao muitos porque era muito calada. Mas saía para comer com eles e se divertia mais do que imaginava. Mas se entristecia de novo ao voltar ao ecritório, naquela sala pequenina, sem janelas, cheia de papéis empilhados ao seu redor.
Cristina conheceu no escritorio o homem mais bonito que jamais vira em sua vida. Homem sempre sorridente, homem de cabelos dourados como o sol. Ele passava e seu dia se iluminava. Sempre vinha comprimentá-la com um chocolate ou uma flor. Sempre com uma palabra amigável.
Cristina nunca o amou. Cristina só sabia amar o sol. Mas o apreciava por dar-lhe atençao. Ele sim a amava. Cristina era alguém que emanava simplicidade, ingenuidade. Necessitava alguém que cuidasse dela. E ele se propos a isso. Almoçavam juntos, conversavam depois do trabalho. Cristina até o convidou para tomar um café. E contou sua história de amor com o sol. Ele achou graça.
O tempo passou e o sorriso triste de Cristina o cativou mais e mais. Só ele via como os olhos de Cristina se perdiam na janela lá no fundo do corredor. Só ele via Cristina soltar o cabelo preso naquele coque sem graça, para formar cachos rebeldes. Só ele via um meio sorriso quando um pássaro passava na frente da pequena janela.
E quis mais. Cansado de ve-la de longe, quis ve-la de perto, e assim, de repente, levando uma rosa, a pediu em casamento. E viu Cristina empalidecer. Viu os olhos brilharem um pouco, mas logo se apagarem e escaparem até a janela do fundo. E soube, soube naquele momento, que nao poderia, que embora necesitasse proteçao, Cristina era uma alma livre. Lhe deu um sorriso triste, deixou a rosa em sua mesa e se foi, a tristeza pesando no coraçao.
Naquele dia Cristina se cansou de olhar. Se cansou de imaginar. Se cansou de ser triste. De supetao, levantou do seu esconderijo de papel e cruzou o corredor decididamente. E abriu a janela. Todos olharam-na espantados. Cristina abrira a janela! Inspirou o ar puro e o sol tocou seu rosto. Sem sentir, sem se dar conta, pulou a janela, voando em direçao ao sol.
Alguns dizem que Cristina nunca chegou a tocar o chao. Que o vento, finalmente teve pena dela, erguendo-a e levando-a ao encontro de seu destino. Outros acreditam que Cristina nunca se jogou daquela janela, que simplesmente, foi-se para sempre daquele escritorio para viajar pelo mundo.
Eu nao sei, porque nao estava. Sei que hoje em dia aquela janela esta sempre aberta. Acho que é porque ele segue esperando que Cristina volte, voando, por aquela janela, já sem o sorriso triste. Volte para levá-lo junto com ela rumo à felicidade.

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